A verdade científica é uma crença, embora de grau superior

 

“Crença” remete para o grau mais fraco do assentimento, ou da opinião — por exemplo, “creio que a verdade está na ciência” —, ou para um conhecimento propriamente dito, de origem externa e transformado em hábito — por exemplo, toda a gente “acredita” que a Terra é redonda. Ou seja, a crença pode portanto referir-se a uma “verdade” científica adquirida e que não é colocada em questão.

Não é por que a ciência defende uma determinada posição como sendo “verdadeira” que essa posição deixa de ser uma crença. Quando eu vejo gente como a Helena Damião ou os outros do Rerum Natura escrever coisas destas, fico com os cabelos em pé:

“As crenças são ideias a que nos afeiçoamos e que tomamos por verdades, ainda que não tenham suporte científico ou, mesmo, lógico. Fazem parte de nós, precisamos delas; sem crenças a nossa vida seria pouco interessante… Mas elas têm um lugar, e é nesse lugar que as devemos manter. Se queremos estudar física, antropologia, filosofia ou pedagogia é preciso estarmos muito atentos ao que pensamos e perguntarmos com frequência: será uma crença ou será um dado objectivo?

Em todas as áreas do saber que exigem objectividade, mesmo aquelas que se afirmam robustas, as crenças rodam e, sempre que podem, insinuam-se como certezas (é esta a sua tendência), há que ter uma permanente atenção a isso mesmo.”

A crença da Helena Damião, expressa na citação supracitada, não passa disso mesmo: uma crença. A crença pode referir-se a uma “verdade objectiva” — sendo que “verdade objectiva” é sinónimo de “verdade intersubjectiva”, porque não existe objectividade sem ser corroborada.

As “verdades” constatadas pela ciência são crenças de grau superior, mas não deixam de ser crenças; e são crenças de grau superior apenas na medida em que se baseiem no experimentalismo. Mas mesmo a verdade no experimentalismo — por exemplo, com Roger Bacon — é sustentada pela indução por enumeração simples. Stuart Mill formulou quatro regras de método indutivo, mas essas regras só são úteis se aceitarmos a lei da causalidade 1 ; mas esta lei tem como base a indução por enumeração simples 2 : ou seja, Stuart Mill pouco adiantou em relação ao método indutivo de Bacon.

Filósofos como por exemplo Karl Popper insistiram no “círculo vicioso” da indução evocando, por exemplo, o princípio da regularidade dos fenómenos naturais, que é em si mesmo um princípio geral que, portanto, não pode ter sido estabelecido indutivamente. Karl Popper tira daqui o argumento para recusar à ciência fundar-se na indução.

Portanto, o experimentalismo, por si só, não é suficiente para determinar qualquer “verdade objectiva”, embora a “verdade científica” seja uma crença de grau superior.


Notas
1. “Todo o fenómeno tem uma causa”.

2. Por exemplo, um antropólogo vai a uma aldeia portuguesa verificar quantas mulheres têm “Maria” no seu nome. Maria Isabel, Ana Maria, Maria Antónia, Maria Inês, Paula Maria, Maria Josefina, etc., e ao fim de 100 Marias, o antropólogo, assumindo o método de indução por enumeração simples, resolve encerrar a investigação, embora ainda faltassem investigar cinco mulheres; e uma das cinco que faltavam na investigação chamava-se Ambrósia Joaquina.

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